Os labirintos da inteligência artificial

Os labirintos da inteligência artificial

Um dos principais aspectos da experiência com qualquer jogo de video game é também um que muitas vezes passa longe dos pensamentos e olhos dos usuários. A inteligência artificial é parte inerente de praticamente qualquer game já produzido e é a grande responsável pelo desafio, ou pela falta dele.

Em Resident Evil, tal tecnologia apareceu de forma mais presente em Resident Evil 4, quando os inimigos se tornaram mais inteligentes e estratégicos. A IA também foi parte integrante da experiência da maioria dos usuários brasileiros de Resident Evil Outbreak, que não podiam jogar o título pela internet, e chegou a seu ápice em RE5, quando não somente os inimigos como também o parceiro do jogador eram controlados pelo computador.

Tais sistemas, ao mesmo tempo em que tentam deixar os games mais desafiadores e completos, também podem ser elementos de grande frustração para os usuários. O que dizer quando um parceiro joga fora um item de extrema urgência ou utiliza um spray de cura ao receber um pequeno dano enquanto o protagonista está caído ao chão, implorando por ajuda?

Conceitos básicos e os desafios da IA

Os labirintos da inteligência artificialEm conceitos bem básicos, a inteligência artificial é a maneira com a qual o computador é programado para agir e reagir em determinadas situações ou quando está sujeita a estímulos do usuário. Tudo isso é feito por meio de equações matemáticas e linhas de código que determinam, por exemplo, se em um dado momento o ideal é passar por cima de um obstáculo, correr ao redor dele ou destruí-lo, de acordo com o que está acontecendo no ambiente de jogo e com as ações que o jogador está realizando.

A IA, como é conhecida, é considerada uma ciência por si só e conta com especialistas que não estão apenas dedicados à programação de games, mas também trabalham com sistemas que tentam imitar o ser humano. Isso pode servir para uma infinidade de propósitos, mas, nos jogos, a inteligência artificial é utilizada como uma das maneiras de tornar a experiência o mais próxima possível da realidade.

De acordo com Tarqüínio Teles, presidente da desenvolvedora brasileira Hoplon, gerar uma inteligência artificial de forma que ela seja infalível é fácil. A dificuldade está no balanceamento desta programação e no processo de encontrar maneiras de que reaja como um ser humano, e não como uma máquina. “É um processo de tentativa e erro. Uma IA deve agir como um [funcionário] jogando tênis com o chefe: deve ganhar, mas não de muito, ou perder sem parecer que esteve entregando o jogo”, explicou ele, em entrevista ao Nerdcast.

Os labirintos da inteligência artificialPara Remco Straatman, líder de desenvolvimento em inteligência artificial da Guerilla Games — desenvolvedora da série Killzone — criar IAs para parceiros do jogador é ainda mais difícil, devido às expectativas diferentes em relação ao personagem controlado pelo computador. Em entrevista ao Gamespot, ele afirmou que, enquanto os oponentes devem apenas atirar contra o jogador, um companheiro deve disparar, manter-se fora do fogo inimigo e auxiliar o protagonista sempre que necessário, além de interagir com o ambiente de maneira adequada.

A primeira vez é inesquecível (no mal sentido)

Resident Evil Outbreak, além de ser o primeiro game da série a contar com funcionalidades online, foi também o pioneiro na utilização da inteligência artificial como traço principal da jogabilidade. Quando jogado fora da internet, o título fazia com que o computador controlasse os companheiros do protagonista.

Os labirintos da inteligência artificialA questão é que Resident Evil Outbreak foi feito, especificamente, para ser utilizado online. Ao mesmo tempo em que a arquitetura para este fim era bem acabada e não tinha muitos problemas, a inteligência artificial sofria com uma péssima programação que, apesar de não inviabilizar a jogabilidade, tornava-a extremamente difícil e enfadonha. Para descrever este aspecto, a palavra “frustrante” era a mais usada pela imprensa especializada durante as análises.

Para criar as ações e reações dos parceiros do protagonista, a Capcom idealizou um sistema de afinidades que determinava a atitude de cada personagem em relação a outros. O problema é que tal programação funcionava apenas perante o jogador. Os sobreviventes controlados pelo computador dificilmente se ajudam e, na maior parte do tempo, ignoram uns aos outros mesmo em momentos de extrema necessidade ou combate ferrenho.

Os labirintos da inteligência artificialAlém disso, a inteligência artificial de Outbreak é notória entre os fãs por não saber analisar o momento e os perigos de cada situação. Sendo assim, não é incomum observar parceiros jogando fora itens-chave enquanto coletam munição para armas que nem possuem, utilizando itens de cura desnecessariamente ou, o pior de todos os casos, partindo para lutar com as próprias mãos contra chefes de fase, em vez de auxiliarem a distrair o monstro ou partirem em busca de armamentos.

Tais questões transformam Resident Evil Outbreak, e sua sequência, em não apenas um game no qual o jogador deve lutar pela sua sobrevivência, mas também em que é preciso agir como babá de diversos sobreviventes com problemas mentais. Por mais perseverante que o usuário seja, há um limite para a utilização de ad-libs randômicos e atitudes insanas. Terminar os cenários com todos os companheiros vivos era uma grande demonstração de habilidade e paciência.

Cobrindo todas as possibilidades (ou não)

O fato de um título ser dedicado especificamente à jogabilidade online não é desculpa para renegar o mundo desconectado. Pelo menos foi isso que a Valve provou com a série Left 4 Dead, um FPS frenético no qual o (s) jogador (es) devem sobreviver a hordas de zumbis atletistas.

Os parceiros controlados pelo computador são capazes de perceber quando o usuário está em apuros e se aproximam dele para ajudá-lo, compartilhando itens de cura ou auxiliando na matança. Os outros sobreviventes, porém, não estão nada a fim de se sacrificarem e, caso a situação esteja realmente crítica, eles preferem proteger a própria pele a morrerem junto com o jogador.

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Os problemas na programação da inteligência artificial, porém, vão muito além do comportamento dos inimigos em combate. É o que prova a série Metal Gear Solid. Conhecida por sua jogabilidade furtiva, o game faz com que um batalhão de soldados seja convocado caso o protagonista, Solid Snake, seja visto por um guarda de plantão. Nestas situações, os combatentes se comportam de maneira muito bem coordenada, e podem criar emboscadas ou atacar de forma inteligente.

O problema é que, uma vez que o protagonista se esconde e o nível de ameaça é diminuído, os guardas continuam suas atividades normalmente, como se nada tivesse acontecido. E Snake continua ali, escondido dentro de uma caixa, esperando a hora certa de cortar a garganta deles.

Pensando nisso, a Rocksteady, desenvolvedora de Batman: Arkham Asylum, criou o que chamam de “sistema de stress”. Após serem alertados sobre a presença do Homem Morcego em uma área, os guardas mudam suas maneiras de agir, passando a andar sempre acompanhados, e se tornam mais atento, chegando a disparar contra sombras ou a qualquer vislumbre do Cruzado Encapuzado.

Um aumento nas funções cerebrais

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A segunda experiência com inteligência artificial na série aconteceu em Resident Evil 4. Até o lançamento do game, os inimigos da franquia não apresentavam nenhum tipo de comportamento coletivo, mesmo que estivessem na tela em grandes quantidades. A estreia dos Ganados, além de modificar o paradigma da série, também significou a introdução de inimigos estratégicos e muito mais inteligentes e letais.

E agora sim, a Capcom acertou. Os camponeses espanhóis eram extremamente conscientes do ambiente no qual estavam lutando e criavam estratégias básicas para atacar com eficiência. Em vez de se amontoarem na direção de Leon, alguns preferiam seguir pelas laterais ou subir em estruturas, atirando ferramentas ou flechas à distância. Isso exigiu que o jogador também revisse suas maneiras de atacar, uma vez que lutar contra Ganados era bem diferente de enfrentar os bons e velhos zumbis.

O resultado foi um título extremamente desafiador que, até hoje, permanece fresco e atualizado. Jogar Resident Evil 4 nas dificuldades mais altas não é para qualquer um.

IA para todo lado

Em Resident Evil 5, a Capcom elevou ainda mais os conceitos de inteligência artificial que havia firmado no jogo anterior. Os Majinis, versões atualizadas dos Ganados, se comportavam como edições melhoradas e eram ainda mais estratégicos e vorazes. A desenvolvedora também adicionou novos elementos no cenário, tornando os ataques ainda mais coordenados e a tarefa do jogador muito mais difícil.

Os labirintos da inteligência artificialO quinto jogo da série também marcou o retorno da jogabilidade online e do modo cooperativo de Resident Evil Outbreak. Chris Redfield, o personagem principal, veio acompanhado de Sheva Alomar, parceira que, quando não utilizada por outro jogador via internet, era controlada pela inteligência artificial.

O resultado, aqui, foi bem diferente e melhor que o visto em Outbreak. A parceira do protagonista sabia se virar em campo de batalha, auxiliava quando necessário e sabia reconhecer ordens simples, como um pedido para se juntar ao jogador ou entregar um determinado tipo de arma ou munição.

Isso não significa que a IA de Sheva é perfeita. Dizer isso, na verdade, seria um equívoco exagerado. A programação da personagem ainda é relativamente simplista e não leva em conta realidades frequentes do campo de batalha do game.

Quando ordenada para permanecer próxima ao personagem, Sheva tende a utilizar sempre a arma mais fraca de seu inventário. Isso não significa que ela utiliza a faca contra chefes de fase, e sim a Handgun. O oposto pode ser ainda pior pois, se o jogador a programa para andar livremente pelo cenário, ela pode gastar munição das armas mais poderosas desnecessariamente. Além disso, a personagem normalmente se perde do jogador, acabando com a partida ao ser ferida gravemente em uma distância inalcançável.

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Sheva também tem atração por coisas brilhantes, quase como um animal. Não é incomum vê-la, durante um intenso combate, interrompendo seus disparos para coletar tesouros ou caixas de munição espalhadas pelo cenário. Ou ainda, entregando estes itens recém-coletados a Chris, mesmo que eles não sejam úteis naquele momento.

Uma tática nada criativa também foi utilizada pela Capcom para aumento da dificuldade em Resident Evil 5. Em vez de, no modo Profissional, programar inimigos ainda mais violentos e estratégicos, a empresa preferiu diminuir ao máximo a inteligência artificial de Sheva, ao mesmo tempo em que tornou os Majinis extremamente resistentes. O mesmo não vale para Chris, que pode morrer com um único ataque de qualquer inimigo. Jogar o título neste modo sem o auxílio de um parceiro online é, assim como em Outbreak, um grande teste de paciência.

O futuro da inteligência artificial

Apesar de ainda estarmos longe da perfeição em termos de IA —muitos estudiosos argumentam que tal estado jamais será alcançado —há muito espaço para melhora. O aumento no poder de processamento dos consoles e PCs nos leva a um mundo no qual a máquina será capaz de gerar cada vez mais cálculos por segundo com espaço de sobra para renderizações gráficas e sem nenhum tipo de compensação técnica.

Desenvolvedores, porém, discordam quando o assunto é a maneira de chegar ao nível máximo de inteligência artificial. Enquanto para alguns o foco é criar IAs que cada vez mais se comportem como seres humanos, para outros o caminho está em criar não uma programação perfeita para a atitude do computador em relação a um problema, e sim, em uma maior diversidade nas respostas programadas, de forma a tornar a máquina tão imprevisível como uma pessoa de verdade.

Os labirintos da inteligência artificialAdrian Laybisch, presidente da desenvolvedora brasileira Aiyra, aposta em uma corrente conhecida como “rede neural”. O sistema daria ao computador a possibilidade de aprender com os próprios erros e acertos, agindo de maneiras diferentes a cada vez que é confrontado com o mesmo problema. Assim, teríamos uma IA que não apenas se aprimoraria constantemente como seria adaptável ao nível de habilidade e estilo de cada jogador.

Tal caminho, porém, apresenta um grande desafio: como criar uma máquina que possa avaliar situações de maneira tão profunda e complexa como um ser humano, ao ponto de mensurar quais ações são mais seguras? Quando obtivermos a resposta para essa pergunta, com certeza, a forma como jogamos video game será modificada para sempre.

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Autor: Felipe Demartini Ver todos os posts de
Felipe Demartini (Evil Shady) trabalha com sites de Resident Evil desde 2000. É jornalista e descobriu nos games a melhor combinação entre trabalho e diversão.

6 Comentários em "Os labirintos da inteligência artificial"

  1. siksteen 11/10/2011 at 23:22 -

    Muito bom o artigo, ainda mais para mim que pretendo ter minha formação voltada à essa área. Alguns RPGs também são bons exemplos da qualidade da IA.

  2. youkofoxy 12/10/2011 at 14:59 -

    no momento melhorar IA e extremamente difícil, IA perfeita e um coisa que não existe. mas que pode chegar perto da perfeição sim pode.
    no geral a grande dificuldade de criar um parceiro IA bom, e que ele não deve “finalizar” o jogo no lugar do jogador.

    talvez seria uma boa ideia o IA reagir ao próprio jogador de maneira complexa, com algumas variáveis. como tempo, munição e.t.c.

    porém a grande dificuldade mesmo e fazer com que o código seja curto e simples o suficiente para um debug eficaz.

  3. Gabriel U. 13/10/2011 at 18:00 -

    Muito boa a materia, gostei.

  4. DyO SttaG 23/10/2011 at 16:58 -

    Achei muito bom todos os artigos desse site, gosto muito de Resident Evil e toda sua serie ( apesar de não ter jogado toda a serie ).

  5. Leo 29/10/2011 at 14:43 -

    Vamos ver se no Resident Evil ORC, a Inteligencia artificial melhora, já que vc terá vários parceiros.

  6. nome 19/09/2012 at 08:42 -

    Essa matéria é de arrepiar. Amei também! 🙂 😀