Conto: “A Princesa e o Monstro”

Conto: "A Princesa e o Monstro"

O cheiro do Meatloaf inundava a cozinha.
Carmen deixou o catálogo sobre a bancada e abriu o forno. Estava no ponto. Vestindo a luva protetora, puxou a assadeira e desligou o fogo.
– O jantar está pronto! – ela anunciou.
O primeiro a surgir pela porta foi Justin, um Yorkshire Terrier com uma coleirinha vermelha larga no pescoço. Os latidos eram sinal de que ele sabia que ganharia um pedaço generoso de seu prato favorito. Apesar do tamanho, o cãozinho comia como um Pitbull.
Rebecca e Antony vieram em seguida, longe do entusiasmo de Justin.
– Que caras são essas? – Carmen perguntou, já fatiando o rocambole que exala uma fumaça deliciosa.
– Tá passando jornal há horas – Antony explicou, com cara de poucos amigos. – Vamos perder a sessão noturna do Cartoon.
Antony tinha seis anos e o mesmo cabelo ruivo da mãe cortado em tigela. A franja cobria uma testa branca e larga com uma cicatriz antiga, fruto de suas peraltices. Geralmente havia um largo sorriso com covinhas estampado no rostinho angelical cheio de sardas, mas não poder ver desenhos era o pior castigo que ele podia receber. Coçando uma das orelhinhas de abano, Antony sentou à mesa e apoiou o queixo nos bracinhos cruzados sobre a mesa.
– Tantos dias na semana e o noticiário decide se estender logo na sexta? – Rebecca não estava menos desgostosa do que o irmão. Uma chance de poder ver TV até altas horas sem se preocupar em acordar cedo para estudar desperdiçada daquela forma a entristecia. – Puxa!
Rebecca era dois anos mais velha. Também tinha cabelos ruivos, longos e ondulados, e preferia mantê-los presos em uma trança sob uma coroa de princesa de plástico que só tirava na hora do banho. Os olhos verdes eram grandes e brilhantes, mas naquele momento entregavam puro desânimo.
– Nem um Meatloaf quentinho consegue colocar um sorriso nessas carinhas? – Carmen esforçava-se para animá-los. Os filhos eram tudo o que tinha. O marido a abandonara antes que Rebecca nascesse. Na verdade, a segunda gravidez fora o motivo para o sumiço do homem que Carmen fez questão de esquecer o nome. O sorriso perfeito do colegial sumira com os anos e dera lugar ao bafo de álcool. Nunca fora do tipo violento, mas responsabilidade estava fora de seu dicionário.
Carmen sempre fora a única a buscar o sustento da família. Mal terminou os estudos e entrou na equipe de enfermagem do hospital de Raccoon. Perdera os pais quando era bem pequena, o que a ajudou a sempre contar consigo mesma. Sustentar o marido não era a pior parte; o que a matou foi perceber que ele não queria dividir a atenção com filhos. Sempre seria um moleque, e não fazia falta.
– Calma, Justin. Já está saindo.
O cãozinho começara a pular na perna de Carmen, sinal de que não estava gostando da demora em ter seu jantar servido. Se levasse mais um tempo, Carmen sabia que ele começaria a puxar o pano da mesa, então era melhor atender ao pequeno Yorkshire. Não escondia adorar suas birras infantis, e encorajava os filhos a tratarem-no como um igual.
Somente depois de colocar a grossa fatia do rocambole de carne na tigela de Justin Carmen pode sentar para se servir. Antes que sentisse o gosto da primeira garfada, o telefone tocou. Os filhos não levantaram os olhos nem quando ela se levantou, apenas continuaram cutucando a carne, sem apetite.
– Alô?
Era sua chefe. Desde o dia anterior estranhos ataques haviam transformado a rotina do hospital. Estava tudo de pernas para o ar e ninguém sabia o que de fato ocorrera. Pessoas feridas chegavam aos montes, a maioria vítima de animais raivosos. Havia até mesmo um toque de recolher na região, mas Carmen sabia que em todo lugar existiam adolescentes dispostos a procurar encrenca. Se pudessem desobedecer as autoridades, por que não o fariam?
Julia, a enfermeira-chefe, desculpou-se mil vezes antes de pedir para Carmen tirar a folga em outra noite. Todos os enfermeiros de folga naquela noite receberam o mesmo chamado. As coisas haviam saído do controle no hospital e toda ajuda era indispensável.
– Tudo bem, Julia. Pare de se desculpar. – Carmen mantinha o tom suave por mais que quisesse suspirar. Sempre pôde contar com a superiora quando os filhos precisaram dela na hora do trabalho, e o mínimo que podia fazer era não demonstrar preferir ficar em casa, descansando. O dia anterior fora exaustivo e, pelo tom de Julia, a noite que apenas começava seria pior. – Vou chamar uma babá para as crianças e chego aí em meia hora.
Carmen ouviu o telefone emudecer após um breve agradecimento e esfregou os olhos. Se soubesse que passaria a madrugada trabalhando teria dormido à tarde. Reprimindo um bocejo, discou um número que já decorara. Não demorou a ser atendida.
– Oi, Cindy. Sou eu novamente.
– Oi, Carmen querida – falou a voz do outro lado da linha. Tinha um tom divertido, jovial. Era Cindy Lennox, a única que Carmen sabia que toparia bancar a babá tarde da noite. Cindy já quebrara vários galhos para Carmen, e as crianças a adoravam.
– Você sabe que eu não ligaria essa hora se não fosse importante, não é?
– Não vai me pedir para cuidar dos meninos, vai?
– Algum problema?
– Me desculpe, Carmen, mas hoje é impossível. Nesse momento estou com o celular entre a orelha e o ombro e as duas mãos ocupadas com bandejas cheias de cerveja.
– Não acredito!
– Pois é. O J’s acabou precisando de mim de última hora. A outra garçonete sofreu algum acidente e não veio trabalhar. O bar está tranquilo, mas você sabe que ele não funciona sem mim – disse ela, rindo.
– Que pena! Tudo bem, Cindy. Obrigada assim mesmo. Bom trabalho e boa noite.
– Se cuide, Carmen.
Após colocar o fone no gancho Carmen permaneceu parada por algum tempo, pensando em quem poderia chamar. Era tarde, e as babás precisavam ser chamadas com horas de antecedência, especialmente em uma sexta-feira. Àquela hora estariam todas curtindo a noite com seus namorados ou amigas.
E se os deixasse sozinhos? Os filhos nunca deram trabalho a ponto de não poder confiar em deixa-los sem supervisão.
A TV da sala continuava como antes, transmitindo um noticiário atrás do outro. Não podia culpa-los em preferir desenhos a aquelas notícias deprimentes. Era como se o jornal local houvesse comprado direitos totais sobre a programação. Todas as notícias envolviam Raccoon e os recentes acontecidos. Quando pensavam que bastava de gente ferida, outras apareciam. Havia até rumores a respeito de uma gangue ou seita adepta de canibalismo. Em que ponto o mundo chegara?
Carmen não podia dar bolo em Julia. Seu emprego era o que mantinha o conforto dos filhos. Por mais que lhe doesse, eles teriam que passar aquela noite por conta própria. Tentando se sentir menos culpada, ligou para a videolocadora e pediu que entregassem meia dúzia de desenhos. Escolheu todos do selo Disney. Que criança sã não gostaria de qualquer um dos desenhos da Disney? O garoto da entrega chegaria em dez minutos, o suficiente para que Carmen se arrumasse para o trabalho.

Quando Carmen desceu as escadas, Antony e Rebecca já estavam esparramados no carpete e assistindo ao trailer de um desenho qualquer.
– Lembrem do que mamãe falou. O telefone do meu trabalho está na mesinha, embaixo do abajur. Podem ver TV até a hora que quiserem, mas não se esqueçam de desliga-la antes de dormir, nem de escovar os dentes. Deixei o rocambole na geladeira, caso sintam fome. E não abram a porta pra ninguém. Deixem a luz apagada e as cortinas fechadas.
– Tá bom, mãe – Rebecca interrompeu. – Confia em mim. Já tenho oito anos.
Carmen sentiu o coração do tamanho de um amendoim. Sabia que podia confiar nos filhos; o difícil era confiar em todo o resto.
Ajoelhando-se, abriu os braços e sorriu. Rebecca revirou os olhos e veio arrastando os pés para um abraço apertado. Antony foi mais rápido, preocupado em perder qualquer cena do DVD. Até Justin veio se despedir, abanando o toco que chamavam de rabo. Caiu de lado e recebeu algumas afagadas antes que Carmen se levantasse.
– Aqui está a chave extra – disse ela, depositando-a sobre um pequeno armário. – Mamãe ama vocês três.
– Tchau, mãe – Rebecca apressou a despedida.
Por menos que gostasse de tanta demonstração de carinho, Rebecca sabia que a mãe contava com ela aquela noite, e a amava muito para decepcioná-la. Não fariam nada além de assistir muita TV e ficar acordados até quando aguentassem.
Pela janela, a menina viu a mãe atravessar a rua e chamar um táxi. Adiante um homem parecia também chamar o táxi, mesmo após Carmen abrir a porta do carro e conversar com o motorista. O homem, cuja presença ainda não havia sido notada por Carmen, se aproximava do táxi a passos lentos, o braço erguido. Rebecca pensou se tratar de algum bêbado e, por um segundo, temeu pela mãe. Felizmente a viu entrar no veículo e fechar a porta antes que o homem a alcançasse. Ele deve estar muito bêbado mesmo, pensou a menina. O carro já virou a esquina e ele continua indo na mesma direção com o braço erguido.
Rindo por dentro, mas sentindo uma ponta de aversão para com o desconhecido, Rebecca fechou a cortina e se juntou a Antony. O filme acabara de começar.

O filme havia terminado e Antony cantava junto com a música dos créditos. Por mais que Rebecca adorasse aquilo, não conseguia acompanha-lo. A coroa em sua cabeça a tornava uma princesa, e princesas nunca cantariam com a TV. Crianças!
Durante o filme Rebecca havia tomado dois ou três copos de suco, e sua bexiga estava gritando. Deixou o irmão brincando de karaokê e subiu as escadas de dois em dois degraus.
Livre de todo aquele líquido, aproveitou que estava lá em cima e foi até seu quarto pegar outra almofada. Antes que alcançasse a cama, uma estranha movimentação chamou sua atenção, então se dirigiu à janela.
Havia algumas pessoas na rua. Lembrava de ter ouvido algo sobre toque de recolher e, conforme a mãe explicara, significava que ninguém devia sair de casa a partir de determinado horário. Ou seja, aquilo estava totalmente errado. No mínimo dez pessoas, homens e mulheres, vagavam por ali, sem se preocupar em distinguir calçada ou meio da rua. Pareciam bêbadas. Talvez tivessem bebido no mesmo lugar de onde o homem que seguiu o táxi viera. Seria algum baile? Rebecca sonhava com o dia em que poderia frequentar bailes e ser cortejada pelos garotos. Queria esnobar todos, mas queria estar lá. Naquele momento decidiu que não beberia nunca. Como era feio o andar de um bêbado. Arrastavam os pés e alguns haviam perdido os calçados. Os braços pendiam moles do lado dos corpos, as roupas sujas.
Uma das mulheres chamou sua atenção. Embora a iluminação fosse escassa, pôde distinguir a cabeleira farta da mulher jogada sobre o rosto. Estaria ela enxergando alguma coisa? Deprimente.
Decidiu parar de dar ibope ao grupo alcoolizado e acendeu a luz. Não precisou procurar muito. A almofada estava caída do outro lado da cama. Aquele Justin deve ter puxado minha almofada de novo, pensou. Pelo menos não fez xixi nela dessa vez.
Apagando a lâmpada, voltou à sala. A luz não havia funcionado por mais de dez segundos, mas foi o suficiente para chamar atenção de olhos que, até aquele momento, não sabiam o que procuravam.

– Vamos assistir Mulan, Tony.
Rebecca havia deixado o irmãozinho escolher o primeiro, mas agora era sua vez.
– Não. Eu quero o Hércules.
– De novo filme de ação? Nós acabamos de assistir o Corcunda. Eu quero ver um de princesa.
– Não, sem filme de menininha – Antony bateu o pé.
– Mas não é de menina. Tem uma batalha em uma montanha de neve e tudo mais. Tem até uma avalanche que sai destruindo tudo.
Rebecca havia tocado no ponto fraco do irmão. À menção da palavra avalanche o menor arregalou os olhos.
– Sério, Becky?
– Prometo que sim.
– Então tudo bem. Mas depois vemos o Hércules.
Concordando com um sorriso, Rebecca inseriu o novo disco. Também não gostava de filmes de menininhas. Havia cansado de princesas que preferiam esperar os príncipes dormindo do que correr atrás deles. Uma princesa guerreira era o que precisava naquele momento. Sabia que Antony reclamaria até a bendita cena da batalha, mas até lá ela aproveitaria como pudesse.
O filme mal havia começado e Justin levantou num pulo. Rebecca imaginou que ele iria até o quintal fazer xixi, mas estranhou quando o cão pôs-se a latir.
– Quieto, Justin.
O Yorkshire obedeceu por poucos segundos. Girando nas patas, olhou em direção à porta da frente e tornou a latir.
– Quieto!
Rebecca arremessou uma almofada no cachorro, que desviou e aproximou-se ainda mais da porta. Entre um latido e outro cheirava a soleira e rosnava.
– Quieto, Justin! – Dessa vez foi Antony que gritou. Geralmente o menino conseguia fazer o cachorro calar-se, mas não daquela vez.
Irritado, Antony levantou e preparou-se para ir até o cão quando um barulho assustou a todos. Parecia uma batida na porta. Justin correu no mesmo instante, sumindo pelo corredor. Os irmãos se encararam, os olhos arregalados. Havia alguém lá.
Rebecca colocou o dedo indicador sobre os lábios em forma de u. Antony entendeu a deixa e desligou a TV. Imóveis na escuridão, de início ouviram apenas as próprias respirações abafadas. Permaneceram quietos por um tempo que pareceu uma eternidade.
Ainda com o dedo na mesma posição, Rebecca levantou-se e, nas pontas dos pés, foi até a porta. Não alcançava o olho mágico, então encostou a orelha na madeira. Foi quando conseguiu ouvir outra coisa. Um resmungo. Era como se alguém estivesse do outro lado, a míseros centímetros, fazendo algum estranho barulho com a boca. Como se estivesse engasgado. Seria o bêbado?
Sobre o ombro Rebecca lançou um olhar interrogativo a Antony, mas um vulto na janela, sua silhueta desenhada pela luz da lua, a fez soltar um grito. Ela tentou reprimi-lo com as mãos, mas não adiantou. As pancadas na porta continuaram, intensificando-se, e a maçaneta passou a tremer.
– Becky! – Antony havia levantado correndo e abraçando a irmã.
– Calma, Tony – ela tentou tranquiliza-lo, lutando contra as lágrimas. Não podia chorar ou o irmão se desesperaria ainda mais.

Conto: "A Princesa e o Monstro"

Clique para ampliar. (Ilustração: Val Deir)

Eles podiam fazer quanto silêncio quisessem; sua presença já havia sido detectada. Duas pancadas bastaram para que o vulto arrebentasse a vidraça. Antes que suas mãos puxassem e arrancassem a cortina, a dupla subia a escadaria aos tropeços.
Foram direto para o quarto de Rebecca. Antony arrastou-se para debaixo da cama, mas a menina o puxou pelo braço e ambos entraram no armário. Havia estreitos vãos na madeira que permitiam enxergar do lado de fora. Não demorou para Rebecca desse conta de que devia ter trancado a porta do quarto. O medo, porém, impedia que suas pernas se movessem. Ao longe ouvia o barulho vindo da sala. Vidro sendo quebrado, batidas contínuas na porta. Lamentos ininteligíveis. Os perturbadores sons estenderiam-se por horas a fio. No fundo do armário, sob o cabideiro de roupas, Antony choramingava com as mãos pressionando as orelhas.

Antony havia dormido após soluçar por longos minutos.
Rebecca não conseguira desviar os olhos da porta escancarada. A bagunça vinda do andar inferior continuara por tempo demais. Em certo momento o telefone tocara, mas alguns gemidos e uma pancada o silenciaram. O barulho do aparelho sendo arremessado no chão foi inconfundível. Tinha certeza de que era sua mãe. Talvez não conseguir falar com eles a fizesse voltar mais rápido pra casa.
Uma forte cãibra atingiu a perna de Rebecca, obrigando-a a se levantar e esticar o corpo. De repente, lembrou-se de Justin. Onde estaria o cachorro? Depois do susto, ele sumira e não dera sinal de vida. Se tivessem um cão maior, um Pastor Alemão talvez, aquela invasão já teria terminado, resultando nos intrusos expulsos a mordidas. Mas um Yorkshire? Aquele pedacinho de nada não assustava nem uma rã. Ao observar o irmão dormindo, temeu pelo cão. Antony amava Justin.
Respirando fundo, Rebecca abriu o armário o suficiente para que pudesse sair, e voltou a fechá-lo. Um pé após o outro, cautelosamente aproximou-se da porta e enfiou a cabeça no corredor. Silêncio. Com o coração acelerado, esticou o pescoço.
– Justin – chamou o mais baixo que pôde. Nada.
Lançando um olhar ao armário, esgueirou-se pelo corredor, as costas coladas à parede. Os pés deslizavam pelo carpete e nunca pareceram tão ásperos. As últimas noites haviam sido quentes, mas a temperatura naquele momento era insuportável. A respiração saía de forma pesada, difícil. Uma gota de suor deslizou pela testa de Rebecca no momento em que ela alcançou o topo da escadaria.
Dali via o hall da entrada e parte da sala. Pela iluminação noturna notou alguns cacos espalhados pelo tapete. Havia um rastro indistinguível na escuridão que se estendia pelo assoalho, como uma trilha de algo escuro. Pensou tratar-se de sujeira trazida de fora por Justin, e ao mesmo tempo tinha certeza que não era. Decidiu chama-lo mais uma vez.
– Justin!
O chamado saiu mais ríspido do que pretendera. Instantaneamente tapou a boca e prendeu a respiração. No mesmo instante ouviu algo que preferia não ter ouvido. Alguém estava dentro da casa, e emitia um pavoroso ruído. Grunhia como um porco fuçando o chiqueiro. O pior era o som de algo sendo arrastado, seguido de arranhões. Rebecca sentiu a boca seca.
– Becky!
Talvez Antony tivesse se aproximado silenciosamente demais, ou talvez Rebecca estivesse em transe de medo, mas o toque repentino da mão sobre seu ombro fez Rebecca gritar como desejara a noite toda. Algo que não devia ter feito, ela sabia, e não adiantava tapar a boca dessa vez. Os grunhidos sumiram e deram vez a um berro que definitivamente saía do fundo da garganta de algo diabólico. Aquele som era e não era humano. O arrastar ganhou força em algum ponto abaixo da escada.
– O que foi isso? – Antony sussurrou, os olhos esbugalhados. – Eu quero a mamãe!
Shh, Rebecca fez com os lábios. Pregou os olhos no andar de baixo, ouvindo o som aproximar-se. Não podiam mais ficar ali. Precisavam sair e pedir ajuda.
Pegando a mão do irmão com força demais, Rebecca desceu um degrau. Engoliu em seco. Sentia Antony tremer, ouvia seus dentes batendo. Nunca sentira tanto medo. Conseguiu descer mais um degrau. A mãozinha do menor agarrava a barra da camiseta rosa da irmã. Em algum ponto da casa, os gemidos continuavam. Avançando outro degrau, Rebecca avistou a chave exatamente onde a mãe havia deixado. O melhor era o armário sobre onde ela estava ficar ao lado da porta. Se fosse rápida conseguiriam sair antes que o invasor os descobrisse. Com esse pensamento venceu o degrau seguinte, e quase foi levada abaixo. Antony tropeçara, mas Rebecca fora rápida em firmar o pé e evitar o desastre. Repreendendo-o com um olhar severo, esperou para ver se a movimentação repentina atraíra atenção de quem quer que estivesse ali. Os grunhidos continuavam, mas não mudaram. Ansiosa, Rebecca desceu dois degraus de uma vez, e parou para escutar. Sem mudança, mas os arranhões estavam perto demais. Precisava agir. Apertando a mão do irmão, como se ele entendesse a mensagem com aquele gesto, Rebecca acelerou o passo e desceu a escadaria de uma vez. Alcançando a chave, lutou para dominar o tremelique nas mãos. O tilintar do metal não ajudava a concentrar-se, tampouco Antony chorando com o rosto grudado em suas costas. O suor excessivo fez com que a chave escorregasse e atingisse o assoalho com um notável estardalhaço. Abaixando-se, Rebecca não conteve o olhar para trás. Foi impossível conter o grito.
Uma mulher encarava as crianças através da cabeleira negra, desgrenhada e oleosa. Ela se arrastava para fora de um cômodo como se saísse de um buraco, uma das mãos cravada na dobradiça e a outra apoiada no assoalho. Rebecca descobriu do que se tratava a trilha. Era sangue, e vinha da mulher. Sua roupa, outrora branca, exibia barro em diversas partes, mas a sujeira que mais chamava atenção eram as marcas vermelhas. Marcas de mãos. O camisão esgarçado na gola havia sido rasgado na altura da costela e exibia um ferimento nojento. Rebecca pôde sentir o cheiro do pus. A boca da mulher parecia mastigar algo, e pelo modo como o sangue esvaía-se dali devia ser a própria língua.
Assim que pôs os olhos encolerizados sobre as crianças, a boca arreganhou-se exibindo uma fileira de dentes amarelados e sujos. Os braços começaram a trabalhar mais rápido e as unhas eram cravadas na madeira, a mulher lutando para alcançar aquelas duas criaturazinhas tão vulneráveis. Cega pelo medo, Rebecca esqueceu completamente da chave e pôs-se a correr pelo outro lado, puxando Antony atrás de si. Sem mais ter motivo para esconder-se, Rebecca acendia as luzes por onde passava.
Atravessando um longo corredor chegaram à cozinha. O latido de Justin ecoou. Vinha de fora da casa. Antony precipitou-se até a porta e abriu a passagem inferior que o cãozinho utilizava para entrar e sair quando bem entendesse. Lá estava ele, apoiado sobre as patas traseiras e raspando as unhas na cerca de madeira. Uivava como se pedisse socorro.
– Justin – Antony chamou, a cabeça através da passagem.
O Yorkshire virou a cabecinha no instante em que ouviu a voz do dono. Encontrando seu olhar, dirigiu-se em direção a casa. Se o rabinho fosse maior estaria escondido entre as pernas, pois Justin andava a passos curtos, o torso encurvado e o focinho baixo. Tremia.
– Vamos, menino! Rápido!
Justin estacou. Girou a cabeça para um ponto nos arbustos e ganiu. Antes que Antony pudesse chama-lo novamente, uma figura disparou e atacou o cão. Era cinco vezes maior do que Justin, e injustamente mais forte. Através da vidraça, sobre a pia de mármore, Rebecca não teve a visão privilegiada de Antony. O garotinho viu seu amado cachorrinho ser despedaçado com apenas duas chacoalhadas de uma bocarra cheia de dentes pontiagudos. O sangue espirrou antes que o único latido de dor ecoasse. A coleirinha vermelha desprendeu-se e rolou pelo gramado. Antony seguiu seu trajeto em câmera lenta. No momento em que a coleira parou, sentiu o próprio coração parar. A voz da irmã estava longe demais para ser ouvida. O último som emitido por Justin ainda ecoava em sua cabeça. Seu melhor amigo não existia mais.

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Clique para ampliar. (Ilustração: Val Deir)

Rebecca teve que puxar Antony pela camisa para que voltasse a si. A cabeça do menino abandonou a passagem para cães no exato segundo em que outra a invadia. A mandíbula fechou-se num estalo a milímetros do pescoço de Antony. Era um Doberman, mas estava longe da aparência de um cachorro normal. Um dos olhos não mais existia, assim como a orelha que pendia despedaçada e metade do pescoço onde tripas balançavam. Os latidos eram secos, forçados, quase tornando-se outro som. Sem as cordas vocais o som que escapava daquela boca mortal era infame. Pedaços de Justin mantinham-se presos entre os dentes do cão-monstro, e caíam sobre o piso à medida que ele lutava para atravessar a passagem. Rebecca tremia, mas sabia que era impossível. Ele era grande demais. O sangue gelou quando ele desistiu de forçar entrada e passou a abocanhar a beira da passagem. A menina não acreditava que a madeira fosse tão vagabunda. Bastou cravar os dentes e forçar um pouco para arrebentar um pedaço. Se continuasse naquele ritmo a porta não seria mais problema.
Quase esquecendo-se do outro perigo, girou nos calcanhares. A mulher estava em pé e caminhava lentamente pelo corredor. Uma das mãos permanecia estendida em direção à cozinha enquanto a outra arrastava as unhas no papel de parede, deixando marcas por todo o caminho. À medida que avançava, a intrusa deixava escapar uma baba ensanguentada pelo assoalho. Suas juntas pareciam estalar conforme movia-se. Era como uma marionete comandada por alguma entidade sobrenatural. Rebecca percebeu que ela andava devagar, mas em um ritmo que os deixaria perto demais se não agisse rápido.
Voltando a atenção ao Doberman, viu que ele conseguira passar a cabeça e uma das patas pela passagem com a borda estraçalhada. A força que empregava fazia a madeira rachada ranger. Procurando ao redor, Rebecca deparou-se com o cepo sobre a bancada central e não pensou duas vezes antes de puxar uma faca. Um cutelo. Decidida, mas com cautela, aproximou-se da porta, o que fez o cão agitar-se ainda mais. Os latidos machucavam os ouvidos das crianças. Antony mantinha as mãos pressionando os lados da cabeça de costas para o corredor, de onde a mulher se aproximava perigosamente. Rebecca ajustou a posição que segurava o cutelo e firmou a mão.

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A lâmina desceu rasgando o ar. A ponta do focinho desprendeu-se do resto e caiu no piso, seguida de um jorro de sangue. A poça formava-se na soleira da porta e o cão não dava sinais de que importara-se com o ferimento. Rebecca cerrou os dentes e golpeou novamente. Foi a vez do olho remanescente explodir em uma bolha de sangue, espirrando nas meias da menina. Ela não deixou-se abater pela consistência pegajosa em seus pés e continuou. Nem quando sua coroa escorregou e caiu em meio à sangueira ela hesitou. A lâmina cortou várias fatias do cachorro antes que Rebecca empregasse mais força na parte de cima do crânio. De alguma forma sabia que ele não sobreviveria sem a cabeça. Era impossível!
Os golpes pararam apenas quando a dor no braço era insuportável. Rebecca nem percebera que golpeava apenas o toco do pescoço do cão-monstro. Sua cabeça transformara-se em algo disforme caído no piso. Rebecca esfregou o rosto e percebeu a mesma sensação pegajosa na pele. Não importava.
Os minutos seguintes desenrolaram-se em sua cabeça como num filme. Assim que se virou, seu olhar encontrou o olhar de Antony. O rosto do irmão exibia uma máscara indecifrável. Sua expressão era de dor, derrota, medo, e algo mais triste do que Rebecca imaginava que algum dia pudesse ver. Antes que percebesse, a figura cambaleante destacou-se atrás do irmão. Rebecca conseguiu puxá-lo, mas não foi mais rápida do que os dentes famintos daquela mulher-demônio. Em uma fração de segundos viu-os serem cravados no bracinho de Antony. O menino não gritou. Seus olhos arregalaram-se mais do que o normal e, por um momento, encontraram-se com os da mulher. Um olhar vago, que não sabia o que era nem por que existia, mas que sabia exatamente o que fazer. Buscar por dor, única e insaciavelmente.
O cutelo afastou-a e Rebecca puxou o irmão mais uma vez, guiando-o pela passagem após empurrar com os pés o corpo duro do cachorro. Com a madeira destruída era mais fácil atravessar. Esperou que ele atravessasse completamente para abaixar-se, jogar o cutelo pra fora e sair também. Sentiu as mãos indecentes da mulher puxando sua meia, mas conseguiu desvencilhar-se sem problemas. O único ferimento que ganhou foi graças a uma farpa de madeira que rasgou sua meia e, consequentemente, seu pé. Nada que a impedisse de fugir dali. De relance viu sua coroa através da passagem, manchada de sangue. Era como se abandonasse um pedaço de si.
De mãos dadas com Antony, Rebecca abandonou os grunhidos da mulher e atravessou o jardim. Antony sequer lembrou-se de olhar para trás, onde jaziam os restos de Justin.

Conto: "A Princesa e o Monstro"

Clique para ampliar. (Ilustração: Val Deir)

Rebecca tentava limpar o ferimento de Antony com a barra da camiseta. Por sorte agira rápido, ou a mordida poderia ter arrancado um pedaço maior. Podia ver a dor no semblante do irmão, mas de alguma forma ele não permitia-se demonstrar. Ou não conseguia.
– Pronto, Tony! Nos livramos dela. Agora nós vamos até o hospital e mamãe vai fazer esse dodói sarar.
No fundo Rebecca tentava tranquilizar a si. Estava travando uma batalha consigo mesma. Sua vontade era chorar como um bebê, mas precisava ser forte pelos dois. Prometera à mãe que tudo daria certo, e daria.
Saindo debaixo dos arbustos, observou a rua. Estava deserta exceto por uma figura cambaleante longe demais para representar ameaça. Fazendo o sinal da cruz, entrelaçou os dedos nos do irmão. Em seguida, alcançaram a calçada.
Antes que Rebecca desse mais um passo, ouviu. Um som peculiar aproximava-se. Era como algo metálico sendo arrastado pelo asfalto. Pensou em voltar ao esconderijo, mas paralisou quando ele surgiu. Era um homem, mas não era humano. Estava longe de qualquer coisa que já tivesse visto, até em seus pesadelos. Uma cabeça de cabelos loiros quase perdia-se em meio a uma aterradora mutação que saía de um dos ombros e crescia como uma grande bolha de pus. Podia jurar que havia um olho entre o sangue e os músculos expostos. Não podia ser! Um olho daquele tamanho? Se realmente existisse algo assim, o que quer que ele pudesse ver seria enxergado por algo que estivesse no inferno.
Metade do corpo era humano, mas a outra metade roubava todos e quaisquer olhares. Completamente deformado. Um braço colossal arrastava um pedaço de ferro humanamente impossível de ser suportado por uma pessoa, principalmente com um só braço. Mas aquele homem, aquela coisa, o fazia. Rebecca sentiu a pele eriçar quando o monstro parou e o silêncio pairou. Lentamente ele girou o corpo de modo que a cabeça ficasse de frente para as crianças. Os olhos encontraram-se. Não conseguiu mais respirar quando percebeu estar sendo analisada por aqueles olhos. Sentia-se nua diante de tamanha aberração.
O braço subiu rápido e desceu, a barra metálica soltando faíscas no asfalto, e Rebecca ouviu o grito mais assustador que alguém um juízo perfeito poderia ouvir. Um som que destruiria qualquer resquício de inocência que ela ainda pudesse possuir.

Conto: "A Princesa e o Monstro"

Clique para ampliar. (Ilustração: Val Deir)

Cindy havia trancado-se em um cômodo qualquer. Não conseguia enxergar nada com aquela escuridão. Os sons hediondos ecoavam lá fora, e só a faziam tremer mais. Era sempre positiva, mas naquele momento duvidou que escaparia dali com vida.
Um som repentino dominou o apertado cômodo. Antes que chamasse atenção indesejada, Cindy levou a mão ao bolso e puxou o celular. A luz do aparelho parecia intensificar-se no breu. Atendeu, mas não sem antes ler o nome no visor: CARMEN – CASA.
– Alô? – disse ela, e ouviu o pedido de socorro, uma voz infantil do outro lado.

O Resident Evil SAC gostaria de agradecer imensamente aos talentosíssimos Tiago Toy e Val Deir pelo pontapé inicial que é dado em mais esse novo projeto do site. Na próxima edição do VideoSAC, você ficará sabendo de todas as informações para enviar seu conto ou fanfic para publicação por aqui. Aguardem!

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Autor: Tiago Toy Ver todos os posts de
Tiago Toy é escritor de ficção e criador da saga "Terra Morta", lançada pela editora Draco, que imagina uma pandemia zumbi ambientada em São Paulo.

20 Comentários em "Conto: “A Princesa e o Monstro”"

  1. Willian Carvalho 23/03/2013 at 16:25 -

    Muito legal, o texto, será mais uma ótima ideia para o SAC, principalmente se os leitores cooperarem enviado as que fizeram. Eu , infelizmente, não tenho cabeça, nem criatividade pra fazer uma fanfic dessa sem misturar as coisas, mas eu admiro quem consegue. Valeu, Tiago !!!

  2. José Mac 23/03/2013 at 19:41 -

    Logo vi, pela qualidade só poderia ser coisa do criador do Terra Morta, rs.

    • Tiago Toy 27/03/2013 at 00:33 -

      Obrigado, José!

  3. Leonardo 24/03/2013 at 01:20 -

    Que legal, adoto escrever histórias sobre RE. Parabéns Felipe, sempre divulgando o trabalho dos outros!!! Escritores de plantão como eu ficam muito felizes 🙂

    • Felipe Demartini 24/03/2013 at 01:31 -

      Fica aí o convite pra vc e qualquer outro escritor de BOAS histórias, enviem seus textos pro SAC. Vou falar alguns detalhes sobre como tudo vai funcionar na semana que vem. 😉

  4. Nicolas Augusto 24/03/2013 at 12:24 -

    Eu tenho uma ideia para uma fanfic de Resident Evil 7. Mas vai demorar um pouco para ficar pronta. Quem sabe a minha história não aparece aqui no SAC!?

  5. Val Deir 24/03/2013 at 15:54 -

    Para mim foi uma grande honra, não só poder ler em primeira mão esse excelente fanfic do mestre Tiago Toy, mas alem disso receber o convite do Felipe Demartine e ter a oportunidade de trazer um pouquinho da minha interpretação do conto em forma de pequenas ilustrações! Uma grande iniciativa do Resident Evil Sac que desejo enorme sucesso e que gere mais e mais frutos! 🙂

    • Max 24/03/2013 at 17:32 -

      Grande Val Deir parabéns! Curto muito o seu trabalho cara, e quanto a fanfic, show de bola parabéns aos dois e ao sac pela iniciativa!

    • Marcus 25/03/2013 at 12:45 -

      Teus desenhos são muito bons, parabéns.

  6. Yuri 24/03/2013 at 17:49 -

    Aaah o cachorrinho morreu.. NÃÃO!! hahaha

  7. Marcus 25/03/2013 at 12:44 -

    Nossa incrível muito bom mesmo, senti muita pena do Justin gostei muito, parabéns pelos desenhos ótimos do Val Deir e a ótima história do Tiago. 🙂

  8. leonardo lopes 25/03/2013 at 21:55 -

    Teve uma inspiração no homem monstro se presta bem atenção ele é bem parecido com a mutação do g-Byrkin na 1º fase dela no re 2.

    • Tiago Toy 27/03/2013 at 00:32 -

      E se não for somente uma inspiração?

      • Felipe Soares 28/03/2013 at 07:12 -

        Mas o Byrkin saiu dos esgotos?

        • Tiago Toy 28/03/2013 at 16:15 -

          E SE for? E SE não for?

          O jogo não seguiu cada passo de Birkin durante o jogo todo, sem cortes. Não podemos ter certeza se ele se manteve todo o tempo dentro dos esgotos. Não há garantia. Suponhamos que havia uma parte d esgoto inacessível, e ele foi obrigado a cortar caminho pela superfície. É apenas uma suposição.

          • leonardo lopes 30/03/2013 at 16:49 -

            Quando eu jogava re 2 eu ficava imaginando por onde o byrkim passava mas nuca pensei nisso mas pode ser e pode não ser,bom o conto e muito legal gostei muito.

  9. Felipe Soares 26/03/2013 at 07:43 -

    Putz! Cara, sem comentários, tá excelente. É tensão o tempo todo, e a leitura nunca enjoa. Fora a arte de ótima qualidade.
    Dou nota 10! Muito bom mesmo, espero a continuação ansiosamente. Parabéns!

  10. Tiago Toy 27/03/2013 at 00:31 -

    Foi um prazer enorme poder criar um conto para o SAC. Nunca poderia recusar um pedido do Felipe, depois de toda força que ele me deu com Terra Morta, antes mesmo da história virar livro. E foi ótimo poder mostrar meu ponto de vista sobre o incidente em Raccoon, deixando a ação e tiroteios de lado e focando no drama de habitantes normais como todos nós. Melhor ainda foi ter meu conto ilustrado pelo talentosíssmo Val Deir. Ainda não parei de babar nos desenhos. Ficaram incríveis!

    Sucesso a nós!

  11. Fabiana Deschamps 27/03/2013 at 01:26 -

    Nota 10 tanto pro conto quanto pros desenhos. O talento do Tiago já chegou num ponto em que dispensa comentários, mas é mais forte que eu: a maneira como ele descreveu a refeição tornou o conto bastante sinestésico e me deixou com água na boca. Criou com extremo êxito uma situação cotidiana, nos apresentou uma casa aconchegante e convidativa como pano de fundo para uma situação tão familiar. A narrativa das crianças vendo os filmes, os típicos desentendimentos infantis durante a sessão, o cachorrinho fofo e serelepe fazendo suas cachorrices… parecia que eu estava lá na sala com eles. E, claro, a coroa de princesa da Rebecca, dando o toque de inocência que faltava, um símbolo de tudo o que a garotinha (e o irmão) deixaria para trás naquela noite… No caso de Rebecca, literalmente: “De relance viu sua coroa através da passagem, manchada de sangue. Era como se abandonasse um pedaço de si.”

    E depois, a situação colorida adquiriu um aspecto perigoso e sangrento, com direito a cachorrinho fofinho destroçado e violentos golpes de cutelo desferidos pela doce garotinha.

    O Tiago realmente sabe como criar uma atmosfera mágica e confortável, e depois presentear o leitor com uma facada no estômago.

    Já os desenhos ficaram perfeitos, com menção honrosa ao desenho do Justin olhando o corpo mutilado do cachorrinho de estimação, no momento exato da perda de sua inocência. Uma cena muito bem retratada, que evidenciou o momento exato da transição do garotinho. A cena da Rebecca segurando o cutelo tb representa os mesmos elementos, mas adorei particularmente a cena do Justin através da portinhola.

    Excelente parceira de autor e desenhista. Adoraria a continuação dessa história. Será que haverá?